Do rock
Carlos Heitor Cony
Tocam
a campainha e há um estrondo em meus ouvidos. A empregada estava de
folga, o remédio era atender o mau-caráter que me batia à porta àquela
hora da manhã. Vejo o camarada do bigodinho com o embrulho largo e
enfeitado.
— É aqui que mora a senhorita Regina Celi?
Digo que não e fulmino o
importuno com um olhar cheio de ódio e sono, mas antes de fechar a porta
sinto alguma coisa de íntimo naquele “senhorita Regina Celi”, sim, há
uma Regina Celi em minha casa, minha própria filha, mas apenas de 12
anos, uma guria bochechuda ainda, não merecia o título e a função de
senhorita.
Chamo o homem que já
estava no elevador. Eram CDs, a garota encomendara um mundão de CDs numa
loja próxima, e pedira que mandassem as novidades, pois as novidades
estavam ali, embrulhadinhas e com a nota fiscal bem às claras.
Gemo surdamente na hora
de assinar o cheque e recebo o embrulho. A garota dormia impune, o mundo
podia desabar, e ninguém a despertaria do sono 12 anos. Deixo o
embrulho em cima do som e volto para a cama, forçar o sono e a
tranquilidade interior, abalada pelo cheque tão matutino e fora de
propósito. Quando ordeno os pensamentos e ambições no estreito espaço do
meu pensamento e retomo um sono e um sonho sem cor nem gosto, começa o
rock.
Anos atrás, seria começa o
beguine. Mas o beguine passou de moda, e o swing, o mambo, o baião e
outras pragas vindas de alheias e próprias pragas. Pois aí estava o
rock, matinal, cor de sangue e metal inundando o dia e o quarto com sua
voz rouca, seu compasso monótono e histérico.
Purgo honestamente meus
pecados e lembro o pai, que me aturava a mania pelos sambas de Ary
Barroso. O velho não dizia nada, mas me olhava fundo e talvez tivesse
ganas de me esganar. Mas me aturava e aturava o meu Brasil brasileiro.
Hoje, aturo o rock. Vou ao banheiro, lavo o rosto, visto um short e vou
para a sala disposto a causar boa impressão à senhorita Regina Celi, que
de babydoll, esbaforida, se degringola ao som de U2.
O tapete já fora
arrastado e amarfanhado a um canto. Meu castiçal de prata foi profanado
com a cara de um tipo até simpático que naquela manhã ganhará alguma
coisa à custa do meu labor e cheque. A senhorita Regina Celi tem a cara
afogueada, os pés e as pernas avançam e ficam no mesmo lugar, o corpo
todo treme e sua, até que ela me estende o braço.
— Vem, papai!
O peso dos meus invernos e
minhas banhas causa breve hesitação. Mas ali estamos, eu e a senhorita
Regina Celi, uma menina que ainda pego no colo e aqueço com meu amor e o
meu carinho, quando ela tem medo do mundo ou de não saber os afluentes
da margem esquerda do rio Amazonas na hora do exame. Ela me chama e me
perdoa.
Então, aumento o volume
do som, espero o tal do U2 dar um grito histérico e medonho — e esqueço o
cheque, a vida e a faina humana rebolando este cansado corpo-pasto de
espantos — até que o fôlego e o U2 acabem na manhã e no som.
Crônicas para se ler na escola.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
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